Redatores: Aline Nalla, Cejana Siqueira, Ludmylla Souza, Larissa Câmara, Marlon Franco e Isabela Saldanha
Ah, o amor! Esse sentimento que desestabiliza os apaixonados, assusta principiantes e encanecidos, estimula a vida social, moral, cultural, política e psíquica; dá sentido à nossa existência e por ele vale a pena todo e qualquer sacrifício. Por outro lado, se vem a nos faltar, é como se tudo ficasse em escala de cinza, sem cor.
Luc Ferry, em seu livro A Revolução do Amor,apresenta o amor como um “novo pedestal de nossos valores, princípio fundador de uma nova visão do mundo, a verdadeira fonte de recuperação do sentido” na atualidade (FERRY, 2012, p. 14). Ao longo da história, a sociedade havia experimentado três períodos éticos. O primeiro deles era regido pela ética da natureza, em que as pessoas tinham lugares estanques e a morte significava a finitude da vida. O segundo era da ética divina, na perspectiva de que todos são filhos de Deus e, nessa condição, havia a promessa de vida eterna. Já o terceiro período foi o da ética da razão, também conhecido como Iluminismo, em que o saber se apresentou como transcendência ao próprio homem. Faziam sentido sacrifícios coletivos em nome das leis da natureza, da religião, da razão, do patriotismo, do colonialismo ou ideias revolucionárias.
Esses três tempos se estruturavam de forma vertical e, a partir da teoria da desconstrução de Nietzsche, ficou evidente a falta de sustentação dessas éticas, o que levou a um quarto período ético, o da ética da responsabilidade. Na pós-modernidade, vivemos uma grande mudança na arquitetura e na transcendência das relações humanas, que agora se fazem horizontalizadas. Escancarou-se a essência vazia do ser humano, e as soluções dadas, até então, a esse vazio, não respondem mais às questões que incidem sobre a escolha frente à multiplicidade de referências.
Já em sua obra Famílias, amo vocês, Luc Ferry faz uma análise de como a vida privada foi ganhando espaço e relevância, sendo o casamento por amor um exemplo da revolução que ocorreu na história humana. Seguindo os passos do autor, e de Jorge Forbes, podemos fazer um paralelo entre aquilo a que se destinava o amor outrora e os seus destinos hoje, ou seja, sobre o novo amor. E o amor pede corpo, como já anunciava Jorge Forbes que, em 2014, diante de um outro cenário, tranquilizava aqueles pais preocupados com seus filhos na telinha: “a internet não vai abolir o encontro corporal, ao contrário. A multiplicidade de contatos virtuais exaure, cansam por seu aspecto ilimitado. No virtual pode tudo e o pode tudo vai contra o desejo, eliminando-o. Sem desejo as pessoas não se recriam, não se reinventam, viram genéricas, aborrecidas. O ser humano precisa de um corpo.” (FORBES, 2014). E foi o que se viu no auge da pandemia: enquanto a ciência e a razão diziam “fiquem em casa”, alguns, sedentos pelo convívio e pela troca, arriscavam-se e saíam às ruas para encontros, causando aglomeração e indignação.
O que assistimos, presenciamos e vivemos nesses dois anos de pandemia que, ao que parece, ainda não acabou, não pode ser lido sem as lentes de Sigmund Freud. Escrito em 1915, antes, portanto, da pandemia de Gripe ou Influenza Espanhola de 1918, que viria a dizimar um quarto da população da época, as Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte faz uma profunda e densa reflexão sobre o nosso (des)encontro com a morte: o inconsciente é ambivalente, pois vive uma dicotomia entre a inacessibilidade à ideia da própria morte, ao mesmo tempo em que é ávido por matar estranhos. Pandemia não é guerra, contexto em que Freud escrevera aquele texto, mas não há como recusar as semelhanças existentes, pois, nas palavras do próprio: “Ela nos força novamente a ser heróis, que não conseguem crer na própria morte; ela nos assinala os estranhos como inimigos cuja morte se deve causar ou desejar; ela nos recomenda não considerar a morte de pessoas amadas. (…) Se queres aguentar a vida, prepara-te para a morte” (FREUD, 1915)
Amar é arriscado, e não há como falar de amor em tempos de pandemia, sem falar na morte e no luto. Como afirmou o pai da Psicanálise, nós nunca estamos mais vulneráveis do que quando amamos, pois tememos perder o objeto amado. Nossa capacidade de amar, ou nossa libido, que no início se volta para nós mesmos “(…) se dirige para os objetos, os quais, por assim dizer, incorporamos em nosso Eu. Se os objetos são destruídos, ou se os perdemos, nossa capacidade amorosa (libido) é novamente liberada; pode então recorrer a outros objetos em substituição, ou regressar temporariamente ao Eu. (…) a libido se apega a seus objetos e, mesmo quando dispõe de substitutos, não renuncia àqueles perdidos. Isso, portanto, é o luto.” (Freud, 1916)
Após o período de confinamento que a pandemia do Covid-19 nos impôs, analisandos chegam aos consultórios questionando-se acerca da obrigatoriedade de passar o Natal em família, se não têm admiração por aqueles integrantes e que, não fossem os laços consanguíneos, jamais haveria qualquer relação. Sentem-se desorientados, deslocados, inadequados e perguntam: “isso é normal?” (sic). Uma analista do grupo relata o questionamento de um de seus analisandos, que há cerca de 5 anos, desde a sua mudança para São Paulo/SP, conta que celebrar o Natal em família passou de desconfortável para insuportável e coloca em cheque a legitimidade de tal costume – em vez disso prefere viajar com amigos, com quem compartilha valores similares. Ele sabe que escolher é arriscado e é preciso responsabilizar-se pela quebra do padrão e sustentação de sua falta. O convívio forçado foi tamanho, que parceiros se surpreenderam ao olhar o outro por uma lupa e (re)conhecer valores tão díspares dos seus, e se indagaram: “como foi que não vi? estaria usando óculos cor de rosa?” (sic). Segundo dados do IBGE, nunca houve tantas separações como em 2021 – foram quase 81 mil casos de divórcio.
“Homem desbussolado”, conceito cunhado por Jorge Forbes remete ao homem desorientado e angustiado, diante das infindáveis maneiras de se viver. Se nunca houve garantias, essa falta fica ainda mais escancarada na pós-modernidade, ou melhor, em TerraDois, nomeação intuitiva e sensível do autor para descrever o atual planeta em que vivemos, que é o mesmo, mas completamente diferente daquele que habitávamos até recentemente. Nada do que foi será, já cantava Lulu Santos, músico e compositor brasileiro.
O que fazer diante desse cenário que liberta e angustia, ao mesmo tempo? Forbes nos aponta um caminho, IR, invenção e responsabilidade.
O desbussolamento em que vivemos nos faz procurar qualquer sinal que nos prometa segurança, como se o surgimento de receitas prontas, manuais de autoajuda ou líderes encerrados em si mesmos, fossem garantia de algo. Não são. Em TerraDois, a invenção e a responsabilidade andam de mãos dadas, não há garantias, não há crédito prévio. A confiança e a amizade vêm, a priori, através desse novo laço social, para que as relações se estabeleçam a partir de novas soluções pensadas para essa era.
E nesse contexto de mundo pós pandemia, destacamos aqui a relevância da psicanálise como ofício, das possibilidades singulares diante da tentativa de elaborar um luto sobre as perdas, e de reencontrar e inventar amores. Como reatar ou atar os laços na expectativa de uma nova vida pós pandemia? Depois de tudo viria como uma solução? Escutamos, nas entrevistas sobre o amor, o termo “legitimar o sofrimento”, tratar das particularidades desse amor que pulsa por caminhos diversos; das consequências de se enfrentar a falta dos semblantes ou até o excesso deles e da dureza de lutos sem a possibilidade de velar. E de outras presenças excessivas, devastadas, sem palavras, presenças desbussoladas.
Em Carta Aberta a Freud, texto de 1931, por ocasião do aniversário de 65 anos de Freud, Lou Andreas Salomé escreve:
“Quando uma análise foi plenamente eficaz, ela oferece uma intensidade maior à visão que adquire o homem curado sobre suas próprias possibilidades criadoras.” …” Aí está porque isto que se manifesta em nós é bem outra coisa que a simples compreensão das causas da doença, ou apenas a sua condenação – não, nessa arrancada, é preciso que a explosão do instinto liberado se metamorfoseie em novo êxtase amoroso. É de propósito que eu escolho esta expressão percuciente: curar é um ato de amor.”
Essa “arrancada” do sujeito em análise vem como possibilidade de responsabilizar-se pela criação de um amar que não é sinônimo de receita pós pandemia. E falando de amor, frente a esses laços inaugurais pós pandemia, a “arrancada” da psicanálise pode estar nesse novo olhar ao amor, incluindo os bisturis da clínica do real como operadores de uma escuta que precipite a ação arriscada e a criatividade.
O amor é sempre inadequado e bagunceiro e, para não cair no fim trágico dos romances, a saída é sustentá-lo e buscar sua experiência possível, como aponta Jorge Forbes em 2007, no Programa Saia Justa. Em TERRADOIS, houve a perda do pai como orientador, o novo amor não tem mediador, arranjos ou espaço para acomodação; as pessoas ficam juntas porque querem; não compartilham necessariamente do mesmo sentido, mas a conexão com o outro. É mais do ressoar do que do raciocinar, pois vai além da razão; a decisão é anterior à compreensão. O novo amor se estende pelo sentimento da amizade, que é um dos pilares da pós-modernidade, já que o laço social é horizontal. Pede invenção ao invés de tradição; responsabilidade ética e singular ao invés da disciplina e da obrigação moral.
Foto: Sujon Adhikary (https://lnkd.in/dY4jm2Zt)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERRY, Luc. A Revolução do Amor: por uma espiritualidade laica. Tradução Véra Lucia dos Reis. Rio de Janeiro, RJ. Objetiva, 2012.
FERRY, Luc. Famílias, amo vocês: política e vida privada na era da globalização, Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
FORBES, Jorge. Um novo Amor e Felicidade em Terradois. Manole 2023.
FORBES, Jorge. O amor pede corpo. Disponível em: http://jorgeforbes.com.br/o-amor-pede-corpo. Acesso em: 17 nov. 2022
FREUD, Sigmund. A Transitoriedade (1916) inObras Completas, vol. 12. Companhia das Letras, 2010
FREUD, Sigmund. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte (1915). inObras Completas, vol. 12. Companhia das Letras, 2010
SALOME, Lou Andreas. Carta Aberta a Freud, página 23. Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida. São Paulo, SP. Landy,2001.P
MACEDO , Elza. A clínica do real e seus bisturis.
https://ipla.com.br/editorias/acontece/a-clinica-do-real-e-seus-bisturis.html
Episódio 4 do Programa TERRADOIS: versão do amor, 2017.
https://www.youtube.com/watch?v=GEH_XSNUlCY
Roda Viva com Jorge Forbes, 2017.
https://www.youtube.com/watch?v=1ErZuFOEZUQ
O que é o amor? Jorge Forbes no Programa Saia Justa, GNT, 2007.
https://www.youtube.com/watch?v=OSfoxlp-lfQ
SANTOS, Lulu. Música: Como uma Onda, 1983.
Foto: Sujon Adhikary (https://500px.com/p/sujonsky?view=photos)